quarta-feira, 5 de junho de 2013

Estranho Lugar o do Amor - 4


“E agora eu vou-me embora

  E embora a dor

  Não queira ir já embora

  Agora eu vou-me embora

  E parto sem dor”

 

 Sérgio Godinho

 

 

A casa era a mesma. Com o portal a desmaiar sem cor, pelo passar do tempo e pelo não passar de nada.

Esse entardecer era como os outros, pincelado de um lilás difuso, mistura indissolúvel do Verão com o lugar. Com aquele lugar.

Os entardeceres ali eram sempre iguais, mas, paradoxalmente sempre diferentes dos entardeceres dos outros lugares do mundo.

Todos os vizinhos sabiam disto, destas coisas simples, menos o marido sem nome que ainda ali morava.

Nesse entardecer, não sei muito bem porquê, não mo contaram os vizinhos e eu não perguntei

A mulher

A Florinda

depois de uma longa e apurada meditação

Decidiu quebrar o silêncio de si própria

E fez-se gente

E falou. Apenas com ele é certo, mas falou. Abriu a pele e mostrou-lhe as feridas.

Ele olhou-as, olhou-a e nada viu. E ela não se importou que ele não visse. Que lhe importava o seu silêncio, se tinha rompido com uma amarra qualquer?

Que lhe importava morrer de improviso o seu sentir? Se a dor das palavras tinha voltado e ela,

agora já mais velha

A mulher do sótão

A mulher só

A mulher amor

A mulher cativa

Que lhe importava morrer ela própria de improviso, se a dor das palavras tinha voltado e ela sem saber o que fazer, sangrou

E ele olhou-a e ela olhou-o

Ela não esperou por mais nada. Alinhavou e caseou a decisão. Saiu da casa, pela porta de entrada. Passo rápido e seguro em direcção a nada, em direcção a tudo.

Contam os vizinhos que ele desapareceu de lá, da casa, mais tarde, mas não muito mais, fechou a porta e levou o cão. Consta-se que parecia perdido, que se afogou na bebida, depois no jogo. Por fim no mar. Consta-se que não morreu, que apenas navegou para longe. Para muito longe.

Ela continuou o seu caminho em direcção ao tudo que ela pensava ser nada. Ficou mais ou menos por ali, por perto de mim. Abordei-a uma, outra vez, falou comigo, primeiro a medo e depois não. Sorriu, muito pouco mas sorriu.

A dor de ter perdido a casa e o cão era uma constante no fundo dos seus olhos. Pensava eu que a dor era por isso. E ela disse-me que sim, que era.

Aquele edifício que fugia ao habitual de outros do género, o tal que era mais bonito, diferente, acolheu-a de novo e ela sentia-se a habitar o paraíso.

O tempo passava igual a si próprio, enganando tudo e todos, menos a ela. O sorriso estava lá, as palavras escorriam-lhe agora, claras, com brilho, como uma chuva de estrelas caídas do céu da boca.

Mas os olhos. Os olhos dela tinham sempre uma cor estranha, uma tonalidade esbatida numa tela vazia, como se o pintor não soubesse ainda o que fazer do quadro. Como se o pintor não conseguisse expressar o sentimento. Pincelando apenas.

Assim eram os olhos dela.

De que cor serão os olhos da ausência?

… como falar dos olhos dela? Tinham sempre dentro deles a maior tristeza do mundo, daquelas que desenterram os poemas do fundo dos poetas, mas que entristecem ainda mais a própria tristeza. Por isso desviava do dela o meu olhar, porque mais triste que os olhos dela seria esta inevitabilidade de não saber calar em mim, o poema triste. Eu, que nem sou poeta….e que nem sei se escrevo por desejo ou cobardia ou por pura heresia, mas que me decalco e inscrevo. De tristeza também, por vezes.

Nada porém que se assemelhe aos olhos dela.

Esta mulher já não tinha o marido sem nome, nem tinha a casa, é verdade, mas tinha outra, sem sótão e sem grades mas trazia-o ainda enrolado no seu dedo anelar.

Não tinha o cão, é verdade, mas tinha a vida, na palma da sua mão. Inteira, aparentemente inteira.

Falei-lhe tantas vezes das flores

Do céu

Das crianças

Da chuva

Do céu e do mar

Das aves e

Da sua impossibilidade natural de voar

Expliquei-lhe que não voava como as aves

Mas que era tão volátil quanto elas.

 

Falei-lhe de tantas coisas,

 

Arranjei palavras mágicas

 

Senhas

 

Nenhuma mudou a cor daquele olhar, da cor da noite, da cor do exacto momento em que a ausência fecunda a solidão.

E da cor que na periferia noite adentro

Almeja apenas as mãos

Apenas as mãos

Uma despindo a outra

Até ao último nó.

 

Falei-lhe por fim, um dia, já em desespero da

Única coisa que,

Não mudaria o seu olhar

Nem que eu fosse louca

 

O marido, o marido sem nome que partira com o cão

Para parte incerta

Logo a seguir a não senti-la certa. Para ele.

 

Espero, observo

Nos seus olhos pardos o passado pesa

E há ferida e há dor e tudo inflama.

De repente quisera não ser eu, poeta ou passo ou autor do mote ou palácio erguido num confuso brio.

 

Observo de novo a cor dos olhos, e consigo defini-la

Castanhos

De brilho

Na margem de cá

Cá, sempre cá.

Fico, reservo, esqueço e lanço ao rio o tonel dos meus anos.

Olhei-a estarrecida. Nada digo.

Pego nela, arrasto-a comigo entre risos, canções, entre mares e corações

E chego com ela à outra margem. Livremente.

Olho-a, olha-me e sorri. Grita em silêncio a vitória, a liberdade. Rejubilo e bebemos até cair. Eu e ela.

A palavra está enterrada, cardíaca, a alma reclama o seu desejo último, ávida, secreta.

Ao acordar ainda lhe falei dos caminhos por trilhar. De todas as outras casas, de todos os outros cães, e de todos os outros maridos. Todos menos um: o que não tinha nome. Olhou-me com doçura, deu-me a sua mão, consentiu na entrega e com os olhos outra vez sem cor, perguntou-me: Mas se ele voltar?

Se ele voltar tenho que mudar de margem.

 

 

 

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