segunda-feira, 3 de junho de 2013

Ficção


O despertador toca, mas já estava acordada. Há muito que enxotava de mim a sensação de torpor matinal que antecede os dias em que me tento enganar, e para isso me embalo e me aconchego nas memórias e nas vontades por cumprir, que nascem do rasto mentiroso das primeiras. Não me apetece sair, não me apetece enfrentar as pedras da calçada nem com elas jogar xadrez, transformá-las em quadrados e triângulos de chocolate preto e branco ou em matrizes de exercícios de “Sudoku”, enquanto caminho apressada por entre os olhares, aparentemente desinspirados dos outros transeuntes. Levanto-me, cabeça no ar e coração ao alto, um pé no sonho e outro no banho, o ritual da toalha que à pressa “me passa a mão pelo pêlo”, a dança do creme que se espalha devagar, com cuidado, torneando a epiderme da minha felicidade, enquanto as ondas do rádio se atiram ao ar, esculpindo o silêncio a palavras e notas juntas, mas que não soam a canção. Visto-me de fresco e depois o casaco, é melhor o casaco, não vão os humores bipolares desta Primavera trocar-me as voltas. Saio, e sigo em frente. Sempre mantive este hábito de seguir em frente, mesmo depois de o tentares mudar. Sempre segui em frente, mesmo sabendo que o fazia em terreno minado por ti. Sempre tentei manter uma aparência feliz e fresca que nem um molho de salsa acabado de borrifar, como que acabada de sair do salão de estética a seguir a uma massagem de qualquer coisa.

Chego ao escritório. É muito cedo e o silêncio está instilado e instalado no lugar dos que ainda não chegaram. O amontoado de papéis errantes sob a secretária, duplicou inexplicavelmente durante a noite. Escrevo, arrumo, arquivo, telefono e faço tudo o que me foi pedido. Reparto a sensação do dever cumprido com a paisagem que dança na janela, dotada de horizontes de esperança inesperada, invisíveis aos olhos dos outros, mas que me chamam constantemente, obrigando-me a arregaçar as meias mangas da minha atenção. Mascaro-me de um interesse colorido, de um sentido de humor prosaico, que vai bem com tudo o resto. Acaba o dia, volto a casa, entro e olho-me da janela. Pareço-me sempre acossada por uma tristeza rectilínea, vertical, daquelas que nos sobe e desce como um ascensor descomandado.

Arrasto a minha consciência e sento-me com ela, frente a frente no velho sofá. Ela expulsa-te e arrasta-me até aos portões entreabertos do sono e eu esbracejo, gracejo, gaguejo e dou pontapés na gramática, porque o que quero é descobrir-te a espreitar-me, por entre as imagens do filme que passa. Segundo intervalo. Penso no jeito danado que me dava esquecer-me da superlatividade absoluta dos teus beijos e da forma como sempre me arrepelaste os sentidos, da popa até á proa.

Lá fora, as sombras dos gatos que se equilibram nos beirais e as heras que cresceram demais, espreitam coscuvilheiras pelos vidros baços das janelas.

Sinto a esperança forçar a placenta da razão, que não cede ao eminente parto prematuro. Percebo que a cofragem deslizante que serviu para construir o nosso túnel, não aguentará com o peso da estrutura, abalroada pela derrocada do passar dos nosso anos.

No meio de bocejos resignados, arrisco o “zapping” e fixei os “Prós e Contras”. Fico-me por aqui….

Enroscada num dos lados do sofá, arrelio o gato, enquanto conto uma a uma as fotografias espalhadas na sala. Parecem-me velhas, gastas, sem cor, conto quatro mas sei que são oito.

E foi sempre assim desde que te foste, tudo na minha vida ficou pela metade!

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