terça-feira, 26 de agosto de 2014

Perdi-me

Perdi-me do cheiro da tua pele, porque lhe misturaste outro perfume. Repara: não há lírios com perfume de açucenas nem rosas com  perfume de jasmim. Tudo é exclusivo e único no universo dos meus sonhos e por isso fiz da tua pele o lençol do meu corpo. Agora tenho frio e fome, tenho uma cegueira nos poros e uma ausência de existir. Perdi-me do cheiro da tua pele, porque lhe misturaste outro perfume.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Olhar Apagado

Trazias o olhar apagado e a barba por fazer mas ainda assim rompeste a minha noite e soltaste estrelas sobre os meus cabelos. E acredita, ninguém espalha estrelas como tu sobre os meus cabelos. Tens esse dom de acender as noites, mesmo quando o teu olhar está apagado. 

quinta-feira, 20 de março de 2014

Onde vais?

Perguntaram-me: onde vais?
E não sei onde vou, só sei que tu me prendes.
 


  Geraldo Bessa Victor (poeta angolano)
in As raízes do nosso amor

terça-feira, 18 de março de 2014

Aragem

Há uma janela aberta nesta casa, mas não a vejo. Queria fechá-la, para não entrar mais vento.
Queria fechá-la, a janela, mas não a vejo, e a aragem, fina e fria, entra-me pela vida devagar e deixa-me imóvel como estátua.
Queria fechar a janela, mas não a vejo.

Ainda ontem


Fecho os olhos e procuro-te nesse mundo dos sentidos que fica sob as nossas pálpebras. Percorro esquinas e ruelas por dentro de mim, sempre a passo lento e largo, palmilhando esta cidade subterrânea, encantada de nós. Ainda ontem te conseguia encontrar por aqui, numa dança de toques furtivos e tremores de pele; ainda ontem fazias nascer flores nas bermas dos meus olhos, fazendo sorrir a própria Primavera. Fecho os olhos e procuro-te no meu mundo, sabendo que só aqui te encontrarei, e no entanto numa alquimia que só mágicos como nós percebem, sei afinal que é neste mundo que jamais te encontrarei. És sazonal e livre como os malmequeres do campo e deixas cair o brilho das manhãs quando te (a)colhem. Fecho-te no meu mundo e procuro-te de olhos fechados, sabendo que mesmo assim, aqui, jamais te encontrarei.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Castelos


Desde que te conheci que comecei a construir um castelo.

Um castelo cheio de torres e muralhas especiais, cheio de curvas e ameias, janelas e lendas de encantar. Todos os sítios por onde passámos, onde nos tocámos, estão aqui no castelo que construo; existem torres feitas de corpos pelo chão e ameias - janelas de quartos em arranha-céus no centro de cidade, ao amanhecer; as ínvias muralhas são espaços pequenos onde tu sentado me espreitas a vida e eu acredito renascer com o elixir do amor com que me brindas. Torres, existem torres no castelo, que trouxemos do castelo de verdade onde numa esquina meio escondida me abraçaste e beijaste mal a tarde tinha começado e as azedas nas encostas pintavam de amarelo o nosso olhar.


O castelo que construo tem brilhos e purpurinas de palavras ditas, conversas a escorrer pelas paredes húmidas e olhares de musgo pintados nos cantos a que ninguém pode chegar. Há um recanto no castelo de onde se avista o mar, se ouve o frémito grito das gaivotas em êxtase lunar e crescem heras na parede, orvalhadas pela espuma. Só tu e eu somos caminhantes nos corredores desse castelo onde crepitam chamas antes do incêndio consumado. Deitamos fogo à torre principal e depois a nós e ardemos pelas horas, carne e pele adentro, sem que em nós existam cicatrizes.


Desde que te conheci que comecei a construir um castelo, tão livre e nu, tão etéreo e único, que não tem uma única parede e se avista de todos os sítios especiais em que estivemos e dos outros, os que existem apenas na memória. Na memória das pedras.


Desde que te conheço que deixei de ter coração de castelo abandonado.

Nunca te encontrei em nenhum verso



Não há no mundo inteiro poesia suficiente para falar de ti
por isso nunca te encontrei em nenhum verso

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Elixir


Não consigo dizer-te a palavra certa
nem descrever o sabor e aroma
do mágico elixir que me acordou
do sono eterno

não consigo
porque me escorre o teu amor pela garganta
alagando os suspiros
que dão mote às palavras

Não consigo dizer-te a palavra certa
porque me corres por dentro
como rio de caudal imenso
como rio
que aplacou no porto do meu peito


não consigo a palavra certa

Semente nua



Hoje sinto-me semente nua com vontade de apodrecer, para poder depois  germinar no principio de todas as coisas.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Vives tantas vezes na raiz das minhas lágrimas


Por vezes vives na raiz das minhas lágrimas. Vives no sítio onde me nascem rios salgados que de tão aprisionados pelas margens sabem-se sem esperança de alcançar os sete mares. Sobes-me ou desces-me as colinas e danças-me inevitavelmente na retina. Inevitável e lento, trémulo e periclitante na lágrima retida; trémula, ali, a lágrima por cair, ali de onde o mundo se reflete pardo e desfocado. Vês como eu, o mundo desfocado e pardo, num porvir absurdo que nos falece antes que seja. Por vezes fazes pequenas ondas no lago dos meus olhos e tremulas ao vento a bandeira da revolta: queres que eu seja tempestade, que tudo apague, que tudo lave, que tudo; mas a lágrima, mareada e sombria, grita e força a grade para rolar livremente pela face. Evito a queda, porque não quero que roles com ela até ao chão e te sujes no sangue que escorre dos meus pés. As caminhadas foram sempre longas e os caminhos pródigos em gumes. Soubesse eu que as lágrimas corriam só em direção à boca, soubesse eu que as lágrimas em que me habitas corriam sempre em direção à boca; soubesse eu e soltava-as nessa liberdade de sal aquoso; deixava-te entrar de novo em mim. E de novo, de novo, sempre de novo, deixava que voltasses a ser líquido, quente e terno, recolhido, na raiz das minhas lágrimas.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Antes e depois de ti: nada.


O teu beijo apagou-me a memória de todos os beijos
A tua mão apagou-me o toque de todas as mãos

as tuas palavras apagaram de mim a memória das outras palavras

o teu corpo apagou de mim a memória de todos os corpos
do mundo

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A asa do meu sonho


Da tua alma vê-se a asa do meu sonho.

Parece haver uma janela no centro do meu peito por onde espreitas e me desvendas, por onde espreitas e traduzes o momento meio tímido que antecede a vontade de beijar, por onde espreitas e deslizas o pensamento até me decifrares, esteja eu onde estiver.

Estendes-me a passadeira vermelha das palavras, e eu toda ouvidos, toda sentidos, avanço mais ou menos decidida a discursar metáforas puras, de água fresca e cristalina, na nascente do teu pensamento. Estendes uma passadeira vermelha de palavras, sobre a madrugada; vou até ti e paramos à entrada da cidade desabitada e encantada de silêncios; ali ficamos de mãos dadas no portão. Ficamos ali simplesmente, horas e horas sem fim. Horas sem fim a ver crescer as heras que protegem as paredes e abrigam o desabrochar tardio das margaridas. Ficamos ali, a ver, folha a folha o desabrochar tardio das margaridas.

Da tua alma vê-se a asa do meu sonho e a outra asa anda a voar à toa sobre o cume da saudade.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A primeira vez que te escrevi foi com o olhar


A primeira vez que te escrevi um poema foi com o olhar, um olhar no meio de tantos, ilustrado com a vontade de beber da tua boca, um verso aceso no meio da cinza de outros versos. Era um poema música, harpa, um poema primeiro abraço; um poema que nem eu sei porque o escrevi: um poema quente e misterioso, de água e de branco, de querer e não querer, de ti e de mim. Começava assim: “Sempre te conheci” e nunca terminava…

A primeira vez que te escrevi um poema foi com o olhar, num dia em que nasceram mundos novos dentro do meu mundo; em que a tua imagem ficou nítida e ampliada como num filme em câmara lenta visto por lente microscópica. E tudo em ti era musicalidade e palavras, tudo em ti era matéria de musa e limpidez. Tudo em ti era esperança e verso , como soneto a sair metricamente emocionado da boca quente e doce de um “dizeur”; tudo em ti eram metáforas improváveis a eclodir de um manuscrito por desvendar.

Houve um poema na primeira vez em que te vi, um poema a anunciar a Primavera, melodias de tempo a fechar um ciclo de nocturnos, a fechar a janela da desesperança e do frio que rompia as madrugadas.

A primeira vez que te escrevi um poema foi com o olhar. Com o meu olhar parado no teu olhar aberto. Escrevi-o e adocei a tua íris, berlinde irisado de castanho e mel.

 

A primeira vez que te escrevi um poema, foi na tua pele com a doçura de um olhar de mel. A primeira vez que escrevi. Na tua pele. Foi com a doçura de um olhar. E nesse dia, respondeste num verso que completou o poema a duas mãos, respondeste que me davas a maresia e os cabelos soltos como borboletas, o escarlate das orquídeas por abrir, respondeste que o meu corpo era o paraíso onde querias ficar até ao fim.

Respondeste tudo isto e no entanto, não escreveste uma única palavra.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Perder-te é perder-me o coração



Às vezes penso que te posso perder, não porque seja eu a perder-te ou tu a deixares de querer-me, mas o  mundo. O mundo pode levar-me a perder-te.

Se te perder: nunca mais nada. Tudo ficará na mesma, mas nunca mais nada. Nunca mais olfato ou sabor e sempre tudo, sempre tudo me saberá ao mesmo. Todas as pessoas me saberão ao mesmo, todas as cartas terão o mesmo significado, todas as flores terão o mesmo aroma, todos os caminhos terão o mesmo destino. Tudo ficará na mesma, mas nunca mais - nada. O coração a bater mal como se fosse transplantado e o corpo o quisesse rejeitar.

Se te perder ficarás para sempre comigo, porque dentro de mim não há mundo e nada te arrancará de dentro, daqui. Colar-te-ei às paredes das minhas veias com a persistência com que as lavadeiras rompem a roupa para a branquearem. Nada, nunca te arrancará de mim. De dentro.

Se te perder nada mais teremos em comum, a não ser: tu próprio, tu todo e esta morte anunciada de nenhum de nós saber viver sem o teu corpo, nenhum de nós saber viver sem os teus olhos, nenhum de nós saber respirar sem o teu ar.