terça-feira, 4 de junho de 2013

Estranho lugar - o amor

ESTRANHO LUGAR

Chamava-se asilo. Era um asilo para velhos.
Diz-se que a excepção confirma a regra e este era um desses casos. Apesar de ser um asilo nada tinha de tenebroso.
Era um palacete antigo, mantendo toda a sua traça original. A fachada exterior e interior adaptada ao fim a que destinava: proporcionar tratamento, alojamento e alento a velhos desamparados.
Mas ela não era ainda muito velha. Porém estava doente. Muito doente.
E desamparada, terrivelmente desamparada.
Ali, encontrou os cuidados de que carecia, o afagar da sua solidão, o carinho, a segurança e o apoio, que há muito esquecera o que significava.
Quando lá chegou não falava, nem andava e,
o seu corpo estava encarquilhado como um papel amassado e aleatoriamente atirado para um canto, e depois pisado com força.
Não andava.
Não se sentava.
Não se mexia.
Nada nela emanava qualquer sinal de movimento.
Nem sequer o olhar!
Parado e colado num ponto que ninguém , a não ser ela, sabia qual era.
(Saberemos depois)

Chegara lá vinda de um sótão.
O sótão de uma casa, como os das fotografias, um sótão comum.
De uma casa comum.
Um sótão com metro e meio de altura,
Onde de quando em vez lhe deixavam comida.
Dividia o escasso espaço com alguns ratos.
Seus companheiros, sua única companhia.
Com quem repartia a comida.
Dava-lhes comida, mesmo a comida sendo pouca
Mesmo quando a deixavam vários dias sem alimento.
Os seus companheiros não gostavam nada quando isso acontecia
E, quando faltava comida comiam-na a ela.
Não muito. Apenas um pouco. Nada que não suportasse.
Só uma mordidela aqui e outra ali.
A prova é que estava viva.
O marido, tinha sido o marido que a tinha colocado naquele sótão.
Pequeno, muito pequeno.
Descobriram isto os vizinhos
Mas passados muitos anos.
Não porque dessem pela sua falta, mas foi o cheiro.
O cheiro nauseabundo da casa.

Antes disso vivia lá mesmo na casa, não no sótão, submissa e feliz!
Ela.
O adorado marido
E um cão.

Ela achava que era feliz.
O cão era feliz.
O marido era coisa nenhuma.

E Ela era quase feliz.
Tinha tudo
Um marido que amava profundamente.
Um cão meigo, carinhoso e fiel que a olhava com olhos de mel
Mostrando sem pudor toda a fidelidade e devoção que tinha por ela: a sua dona.
Quando não estava a limpar, a engomar ou a cozinhar
Ou a cumprir os seus deveres de esposa, satisfazendo os desejos físicos do marido
Estava no alpendre da casa, afagando o cão
Retribuindo-lhe com mel o mel do seu olhar

Mas um dia o marido fartou-se dela
E guardou-a no sótão, como um objecto velho que se não quer já usar.

Ela lá ficou.
Obediente
Sem um grito
Sem um gemido
Sem um ai
Ficou onde ele a colocou
E ali ficou silenciosa e inerte
Meio morta
Durante vários anos

Depois de descoberta pela vizinhança, o carinhoso marido transferiu-a
Do sótão de metro e meio para o tal asilo para velhos.
Que até era bonito, mesmo sendo asilo.
E ela lá ficou. Colocada onde ele a colocou.

Mais uma vez. E ali se deixou ficar.

Lá, foi melhorando.
Muito lentamente, mas foi melhorando
Chegou a conseguir sentar-se.
Todos se esforçavam por ela. Todos menos ela.
Ela limitava-se a ali se deixar estar.
Morta por dentro. De aparência.
Não dizia uma palavra.
De tudo se tentou. Todos os temas. Todos os poemas.
Menos um: o marido!
O tema era proibido, por medo, obviamente, de a fazer entrar em choque.
Seguindo à risca o conselho de todos os médicos, psicólogos e psiquiatras.
Que a observavam sem parar.
Um dia, uma miúda nova que por lá fazia voluntariado,
perdeu a cabeça, e levada pela esperança e pelo desespero de tentar, tentar e não conseguir arrancar-lhe uma única palavra,
Arriscou o mais arriscado
Ousou o mais proibido
Disse a palavra: marido

Momento único em que o milagre aconteceu
Os olhos dela raiados de lágrimas. Não de tristeza, não…
Mas de ternura e de saudade.
Na face, outrora, inexpressiva, desenhou-se um sorriso
E não, não foi um sorriso de ironia
Foi um sorriso de alegria
Toda ela se encheu de brilho
E não, não foi o brilho da raiva
Foi brilho de amor, de paixão, até

E falou
Só para pedir que ele a fosse ver

Ele foi

E depois, ela começou a falar
Nele
No cão
E no voltar para casa.

Ele fazia o favor de lá ir de vez em quando
E ela resplandecia
Ele por vezes faltava, e ela morria de novo
Renascia depois
Quando ele voltava

A casa onde moravam é igual a uma casa
De uma fotografia qualquer
O sótão é nessa casa
O cão vive à porta
Espera o regresso da dona e recusa partilhar a casa, com o animal da casa
Ela pode chamar-se Dulce
O cão pode chamar-se Fiel
Do marido não me ocorre o nome
Não pode ter nome
Porque não é gente
Não é humano
É apenas um erro da natureza que o sistema permite andar à solta.
O ponto onde ela fixava o olhar era a memória da imagem dele
Esta história pode até ser verdadeira
Os nomes não
A casa não é bem como a da fotografia
Mas o cão tem os mesmos olhos de mel.
E eu.. Eu queria ter sido a miúda cheia de esperança que lhe arrancou a primeira palavra, depois dos demorados silêncios.

QUE ESTRANHO LUGAR É ESSE, O DO AMOR!

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.