quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A asa do meu sonho


Da tua alma vê-se a asa do meu sonho.

Parece haver uma janela no centro do meu peito por onde espreitas e me desvendas, por onde espreitas e traduzes o momento meio tímido que antecede a vontade de beijar, por onde espreitas e deslizas o pensamento até me decifrares, esteja eu onde estiver.

Estendes-me a passadeira vermelha das palavras, e eu toda ouvidos, toda sentidos, avanço mais ou menos decidida a discursar metáforas puras, de água fresca e cristalina, na nascente do teu pensamento. Estendes uma passadeira vermelha de palavras, sobre a madrugada; vou até ti e paramos à entrada da cidade desabitada e encantada de silêncios; ali ficamos de mãos dadas no portão. Ficamos ali simplesmente, horas e horas sem fim. Horas sem fim a ver crescer as heras que protegem as paredes e abrigam o desabrochar tardio das margaridas. Ficamos ali, a ver, folha a folha o desabrochar tardio das margaridas.

Da tua alma vê-se a asa do meu sonho e a outra asa anda a voar à toa sobre o cume da saudade.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A primeira vez que te escrevi foi com o olhar


A primeira vez que te escrevi um poema foi com o olhar, um olhar no meio de tantos, ilustrado com a vontade de beber da tua boca, um verso aceso no meio da cinza de outros versos. Era um poema música, harpa, um poema primeiro abraço; um poema que nem eu sei porque o escrevi: um poema quente e misterioso, de água e de branco, de querer e não querer, de ti e de mim. Começava assim: “Sempre te conheci” e nunca terminava…

A primeira vez que te escrevi um poema foi com o olhar, num dia em que nasceram mundos novos dentro do meu mundo; em que a tua imagem ficou nítida e ampliada como num filme em câmara lenta visto por lente microscópica. E tudo em ti era musicalidade e palavras, tudo em ti era matéria de musa e limpidez. Tudo em ti era esperança e verso , como soneto a sair metricamente emocionado da boca quente e doce de um “dizeur”; tudo em ti eram metáforas improváveis a eclodir de um manuscrito por desvendar.

Houve um poema na primeira vez em que te vi, um poema a anunciar a Primavera, melodias de tempo a fechar um ciclo de nocturnos, a fechar a janela da desesperança e do frio que rompia as madrugadas.

A primeira vez que te escrevi um poema foi com o olhar. Com o meu olhar parado no teu olhar aberto. Escrevi-o e adocei a tua íris, berlinde irisado de castanho e mel.

 

A primeira vez que te escrevi um poema, foi na tua pele com a doçura de um olhar de mel. A primeira vez que escrevi. Na tua pele. Foi com a doçura de um olhar. E nesse dia, respondeste num verso que completou o poema a duas mãos, respondeste que me davas a maresia e os cabelos soltos como borboletas, o escarlate das orquídeas por abrir, respondeste que o meu corpo era o paraíso onde querias ficar até ao fim.

Respondeste tudo isto e no entanto, não escreveste uma única palavra.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Perder-te é perder-me o coração



Às vezes penso que te posso perder, não porque seja eu a perder-te ou tu a deixares de querer-me, mas o  mundo. O mundo pode levar-me a perder-te.

Se te perder: nunca mais nada. Tudo ficará na mesma, mas nunca mais nada. Nunca mais olfato ou sabor e sempre tudo, sempre tudo me saberá ao mesmo. Todas as pessoas me saberão ao mesmo, todas as cartas terão o mesmo significado, todas as flores terão o mesmo aroma, todos os caminhos terão o mesmo destino. Tudo ficará na mesma, mas nunca mais - nada. O coração a bater mal como se fosse transplantado e o corpo o quisesse rejeitar.

Se te perder ficarás para sempre comigo, porque dentro de mim não há mundo e nada te arrancará de dentro, daqui. Colar-te-ei às paredes das minhas veias com a persistência com que as lavadeiras rompem a roupa para a branquearem. Nada, nunca te arrancará de mim. De dentro.

Se te perder nada mais teremos em comum, a não ser: tu próprio, tu todo e esta morte anunciada de nenhum de nós saber viver sem o teu corpo, nenhum de nós saber viver sem os teus olhos, nenhum de nós saber respirar sem o teu ar.