quarta-feira, 5 de junho de 2013

Estranho Lugar o do Amor - 2


ESTRANHO LUGAR, O DO AMOR

OUTRA VEZ

 

“Porque percorres o céu inteiro à procura da tua estrela? Poe-na lá”

Virgílio Ferreira

 

 

A mulher era já mais velha. Só um pouco. Mas sim, mais velha.

Continuava a falar pouco. Mas sim, já falava.

E sorria. Sorria mais, não sempre.

Mas mais.

Continuavam a chamar-lhe Dulce, que era o nome dela. Os nomes nunca mudam. Mesmo que as pessoas queiram.

O cão era ainda mais fiel à dona do que dantes. Os seus olhos eram ainda mais de mel. Da cor e do sabor.

O marido, o tal de que não sei o nome, continuava por lá. Diziam que sim. Eu nunca mais o “vi”. Mas sabia, sabia que continuava por lá, a ser, como antes, o dono absoluto de quase tudo.

Naquela mesma casa….

Dono de todas as chaves e do coração dela que nem chaves tinha.

Só não conseguia ser dono do cão. Não era dono do cão porque o cão não deixava. Sabia desde sempre que a sua dona era ela.

Foi num entardecer, igual a todos os outros, todos igualmente diferentes e todos diferentemente iguais.

Um entardecer qualquer.

Um daqueles pedaços do tempo, das horas, dos dias, de todos os dias.

Um pedaço de tempo, que tanto pode ser o princípio como o fim.

Que tanto aproxima como separa.

Que tanto une como isola

Que tanto esconde como revela.

Um daqueles entardecer

Onde se vislumbra já, um projecto de noite emoldurado na

Um sol e uma lua apaixonados.

Um sol e uma lua caminhando apaixonadamente um para o outro.

Era nesse exacto eixo do tempo que ele, o tal marido sem nome chegava à casa. Dia após dia.

À tal casa, que podia ser a de uma fotografia. De uma fotografia qualquer. Mesmo que a fotografia fosse tirada num qualquer entardecer.

Nesse dia o sol e a lua beijaram-se no mesmo momento de sempre, como se nada tivesse mudado.

Mas ele não chegou.

 

Soube-se, pela vizinhança, que cometera um crime. Não me lembro qual, ou não perguntei. Era só mais um.

Outro qualquer, concretizado noutro lugar que não o sótão, que não a casa.

E ela ficou só. Por vezes apenas. Outras não, porque ia visitá-lo. Ia visitá-lo sempre que podia.

Sem que ele o pedisse. Mas ela ia.

A mulher, não tinha ainda dito, era doce, talvez por isso se chamasse Dulce, e sorria agora, não muito ainda, mas mais que sempre. Ela ficou só, é verdade, porém, paradoxalmente, a solidão saiu. Saiu, não pela porta da casa, mas pela porta do coração dela.

O cão dormia com ela na casa. Antes não. O cão tinha um estranho comportamento. Não convivia pacificamente com mais animais. E antes não dormia com ela dentro da casa. Era essa a razão.

O sótão foi fechado, mesmo sem fechadura foi fechado, e a mulher passou a sair à rua, primeiro apenas para se enfiar nas estações de camioneta de cheiro a óleo queimado para ir ter com ele, aos fins de semana.

Mas depois, depois passou a sair um pouco mais. Um dia até foi à feira. Devagar e a medo, mas foi.

E lá, até prendeu o olhar noutro ponto que não a imagem dele. Momentaneamente é certo, mas prendeu.

Prendeu mas não ficou presa.

Porque preso estava ele, por um crime que não cometera, acreditava ela, pensava ela - mas estava.

E ele precisava dela e ela precisava que ele precisasse dela. Só por isso não ficou.

Talvez os vizinhos estranhassem vê-la sorrir agora mais que sempre, talvez estranhassem, mas nunca lhes perguntei e eles nunca mo disseram. E nunca lho disseram. Mas ela sabia-o.

E também sabia que sorria mais que dantes, mais que nunca e também sabia, pensava ela, que não devia.

Sabia agora tanta coisa, que até sabia que talvez fosse isto a felicidade, ou por lá perto.

Sabia, ou sentia, ou sentia que talvez soubesse.

E o cão sabia ou pressentia que mudara de dona. E até sabia a razão. O cão sempre soube de quase tudo, ou pelo menos os seus olhos de mel diziam que sim, que sabia.

Os ratos não. Os ratos morreram no sótão e aí secaram e apodreceram.

Tinham aparecido no sótão livremente, é certo, mas em busca da sobrevivência, e por isso, livremente mas condicionados ao instinto da sobrevivência. E lá morreram, porque lhes faltou o alimento. Ela.

Mas que lhe importava isso? Nem o cheiro lhe importava. Nem o cheiro, nem nada. A leveza do sorriso, alheava-a do mundo. Do mundo, mas não dele. Do marido sem nome e sem registo.

Nunca se alheava dele. Ou pelo menos assim acreditava. E assim me fez acreditar.

E dia após dia, chegava sempre o entardecer, igual ao outro em que ele não chegou.

Um entardecer em que mãos entreabertas, olhos cerrados e corações encantados, procuram sempre um breve encontro.

Entardecer em que há um encanto, que o outro encanto, o do tempo imparável e intemporal os obriga de novo a afastar.

Era apenas mais um entardecer

Que une quem tem a quem se unir.

Os corpos unem-se aos corpos

O sofá une-se à televisão

As bocas unem-se ás bocas.

Os homens às mulheres e,

até

As mulheres às mulheres

E os homens aos homens.

As crianças aos pais

Tudo se une

E há quem se una simplesmente à solidão.

Mas esta mulher não.

Não unia o estar só à solidão.

Talvez fosse o cão dentro da casa a mudar tudo….

No entardecer seguinte era Natal. O ritual repetiu-se, vestiu-se de preto para os vizinhos e para ele.

A cor preferida dela era o azul, mas não lhe ficava bem. Azul era a cor do céu. Nunca seria a dela. Pelo menos por agora.

 

E lá partiu de novo, ao encontro dele. Cheiros à parte, o do óleo queimado que tresandava pelas velhas estações de camioneta misturado com os cheiros da canela, baunilha e outros mais, os do Natal.

Com o pensamento longe, nas curvas da memória, chegou, por fim,  ao destino do seu agora destino.

Um lugar estranho, mas para ela já familiar, mas só subtilmente familiar.

Num ápice, apagavam-se-lhe da memória as náuseas do caminho, causadas pelas curvas, pelo cheiro e pelo desejo exasperante, quase doentio de que o autocarro errasse o seu destino e se perdesse para sempre noutro tempo.

Ele entrava, e ela achava-o único - vestido de igual a todos os outros que ali estavam, é certo, mas diferente, pelo menos para ela. E estava certa….

Nunca antes tinha tido um Natal com ele. Nem sem ele. Nunca antes tinha bebido um refrigerante. E nesse dia sim, bebeu. Nesse dia ele chamou-a pelo nome e ofereceu-lhe uma bebida. “Canada Dry” acho eu. Foi ela que me disse, descrevendo o seu sabor.

Descreveu-o como único. Mas não era literalmente esse sabor  que ela tinha achado único. O sabor único, era o pouco quase nada de ele lhe chamar pelo nome. Pelo seu nome.

E depois entardeceu. Entardeceu de novo. Docemente.

Era só mais um entardecer

Onde de novo se unem sol e lua

Inevitavelmente

Mesmo que não o façam com paixão.

Mas,
Para ela foi um entardecer único

Breves  palavras, sem significado

Trocadas

Arrancadas

Mas palavras

Diferentemente do antes

Do deserto das palavras

Pela única vez sentiu que se chamava Dulce. E sentiu-o porque era doce, muito doce.

E lá partiu ela em direcção à casa da liberdade. E lá partiu ele, para dentro, não interessa em direcção a quê, nem para onde.

Ela sorriu, sorriu muito, mas só na rua!

Sabia que ia voltar.

Só não sabia era quando.

 

TUDO MUDOU

TUDO MUDOU aparentemente, MENOS O AMOR!

 

 

“A esperança seria a maior de todas as forças humanas, se não existisse o desespero”

Victor Hugo

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