quarta-feira, 5 de junho de 2013

Estranho Lugar o do amor - 3


SÓ MATANDO O AMOR É QUE ELE ACABA

 

Não sei, de verdade que não sei, quantos anos passaram. Os suficientes para não me lembrar de quantos.

O lugar era porém, o mesmo: o da mulher doce que tinha um marido sem nome e um cão… que agora dormia, de novo no pátio e que já conseguia coabitar com animais. Mas apenas com alguns: os gatos vadios que por ali se juntavam. Só com esses.

Talvez fosse importante para percorrer mais facilmente o fio desta meada, quantificar o tempo que passou. Mas não sei, de verdade que não sei.

Talvez fosse importante ter contado as estrelas no céu, para perceber se agora há mais, ou menos, mas não contei. E agora não me lembro de quanto tempo passou.

A única pista que tenho é que a mulher era já muito mais velha e até eu, já quase o era.

Pelo menos ela achava isso, que eu era já demasiado velha, talvez até algo senil e por isso, deixou de me contar as suas coisas.

E assim, durante muito tempo, deixou de ser a estrela do meu filme, a mesma da galáxia da fronte dos meus olhos.

Os vizinhos iam dizendo coisas, que já não estava só, que o marido voltara, que enlouquecera. Eu apenas sabia que ele continuava a não ter nome, como sabia que ela sempre se chamaria Dulce. Sabia ainda que o sótão tinha sido aberto. Eram coisas que sabia, que sabia assim como quem sabe coisas simples, como o dia sabe que se lhe segue a noite, como o mar sabe que a areia o espera. Coisas terrenas, mas simples, muito simples.

Como ela, já não me contava nada e o que os vizinhos diziam era etéreo, inconsistente… saí de dentro de mim e, espreitei, espreitei a medo

Pela fechadura de uma porta da casa

Uma porta de um quarto iluminado, apenas por um laivo de luz que

Timidamente surgia pela também tímida frecha da persiana  fechada.

Vislumbrei na penumbra um drama ainda adormecido

22 horas e 22 minutos, marcava o meu relógio de pulso. A mesma hora que marcava o outro relógio, no outro pulso que estava na penumbra, num pulso que ainda dormia.

Havia roupas espalhadas pelo chão, capas de velhos discos de vinil e muitas velas apagadas aleatoriamente distribuídas pelo quarto.

Algo naquela casa havia mudado muito desde que me lembro.  Algo mudara muito, porque no outro tempo, não havia discos de vinil. Isso pelo menos não havia.

A ambiência de sombra e luz, de penumbra e medo, revelaram-me um garrafa vazia e dois copos e o buraco da fechadura afigurava-se-me pequeno para prosseguir em direcção a qualquer coisa, a sua salvação, convencia-me. Questionava-me se a pequenez deste buraco não comprometeria o meu objectivo.

Encontrei rapidamente a resposta, que diabo, a salvação não dependeria nunca do tamanho de coisa nenhuma.

Um dos copos ainda estava de pé, encostado à mesa de cabeceira, o outro caído no chão,

Caído sobre um tapete roto, roto e verde, manchado de um vermelho muito escuro.

Tinto de vinho ou tinto de sangue, não conseguia distinguir.

Uma das capas de vinil ainda com vestígios de cocaína.

Branca.

Neve.

Branca de Neve.

Parecia, de repente uma história infantil.

Ingénua.

Parecia e era.

Uma capa de disco de vinil com vestígios de procura vã.

Inspiração - expiração - Beatles, talvez.

Uma nota enrolada

Um homem nu dormindo, agarrado a uma almofada. Era ele, já velho mas era ele, o marido sem nome. Que voltara, voltara mas diferente.

Assim, olhando de repente, a partir de dentro, mas do lado de fora, até parecia uma criança ingénua, afogando no sono o medo. O medo do acordar.

A imagem fez antever o drama e o quarto tinha duas portas, uma que dava para a cozinha e outra que dava para o corredor. O corredor dava para o sótão. Ela estaria lá, presumi eu, não forçada, mas livremente, aguardando outro milagre.

O quarto tinha também duas janelas, uma dava para a traseiras, para os vizinhos, e estava completamente fechada, trancada, cimentada. A outra dava para um pátio lateral, agora albergue de gatas vadias que para ali iam ter as suas crias e que por ali ficavam até que estas, as suas crias, se tornassem gatas independentes e fossem também vadiar. Para outros pátios ou para outros mundos. Buscando o que de bom o mundo da vadiagem tem para dar: a liberdade quase absoluta! A fome e o frio são compensados pela liberdade.

Livres são todos os gatos mas nenhuns o são tanto como os gatos vadios.

 

Eu pensei desde que me incluí nesta história que aquela mulher, a Dulce, queria um dia ser assim: como os gatos vadios, livre.

Mas não era assim, ela pensava que queria, mas de facto não queria, ou não podia, porque o amor que sentia não era livre, não era atípico, era de um lugar estranho.

Pelo buraco daquela fechadura, emanavam cheiros difusos, efémeros, mas intensos

Cheiros de perfume

Cheiros de incenso

Cheiros de velas derretidas

Cheiros de vinho,

De suor, de prazer, de lágrimas, de gritos

E

De raiva, de dor

Cheirava a morte

Que deixava antever um qualquer drama.

Talvez os vizinhos percebessem pelo cheiro, que a deveriam salvar de novo, nem que fosse para o mesmo asilo. Ou talvez não.

O homem nu que parecia ter medo de acordar estava lentamente a despertar. Não fosse não ter nome e poderia tê-lo chamado. Atraído por qualquer forma. Aqui para o lado de fora.

O seu corpo parecia sentir o cansaço e a dor do prazer que não recordava.

Assoou-se e percebi que a sua amnésia era quase total.

Este homem sempre foi mau, mas antes, quando não tinha partido para aquele lugar, onde ela o foi visitar sempre, mesmo sem ele pedir, não era amnésico, não sabia ainda que se faziam viagens em direcção a ela. Dantes, bastava-lhe apenas ser mau.

Não conhecia ainda aquele milagroso pó branco que trazia à tona de si o melhor e depois o pior logo a seguir e inevitavelmente, o pior.

Que acontecia agora, nesse momento, nesse despertar, que nem lhe permitia distinguir se os arrepios que sentia, eram frio ou maus presságios.

E sentia-se assustado

Esfomeado

E pensava nela. Só pensava nela porque tinha fome, mas ainda assim pensava nela. Onde estava ela?

Doía-lhe a  alma e doía-lhe o coração mas nem se lembrava porquê, e só se lembrava que tinha alma e coração, porque lhe doía. E tinha pena que nunca se tivesse lembrado antes.

Antes da Branca de Neve.

Chamou-a muito alto, pelo nome, e sabia que ela iria chegar, submissa e dócil como sempre, para lhe preparar uma qualquer refeição, gordurosa com pão, muito pão, aquecido  no forno do fogão a lenha, e sabia que ia lamber aqueles beiços animalescos e que se ia atirar de novo para cima da cama e regalar-se com a refeição que a fome e a ressaca transformariam num verdadeiro festim.
Mas ela não respondeu. E não veio. Pelo menos logo.

Tirou o cinto, devagar, preparou-o de modo a desferir à sua entrada, um primeiro golpe, doloroso e certeiro.

O cinto já estava acostumado. Porque o cinto era velho, muito velho!

Olhou novamente o quarto e desta vez viu-o real. O quarto real tal como se tinha tornado nessa noite.

O drama tornou-se visível. Tomou forma. Os copos eram dois.

Onde estava ela?

No quarto, o drama brincava, astucioso, matreiro, mas real tremendamente real.

Levantou-se, saiu e foi ao sótão.

Ela estava lá

Inerte,

Gelada

Aparentemente não sentia nada. Nem fome, nem dor, nem cansaço.

Nada, não sentia nada

Mas estava viva. Ele sabia-o. A cocaína não mata ninguém à primeira.

À primeira é apenas a Branca, a Branca de Neve.

Ela voltaria a sentir. Não que isso lhe importasse, mas importava-lhe não voltar ao inferno de onde ainda agora tinha saído… isso sim, importava-lhe.

Puxou do cinto. Estava nu, mas tinha trazido o cinto. E bateu-lhe, bateu-lhe muito, não para lhe fazer mal, mas para que ela acordasse e assim não lhe causasse mal a ele.

Ela acordou, lentamente mas acordou. Olhos vidrados. Percebeu que ninguém a salvara e caminhou para a cozinha, para preparar a gordurosa refeição.

Ele lambeu os beiços de animal e amaldiçoou o único momento de partilha da sua vida. Não por ela, não , apenas porque  o preço poderia ter sido ainda mais alto. Mais alto do que a dose que tinha desperdiçado, e partilhado com ela num momento de loucura.

Afastei-me do buraco da fechadura, vencida, amaldiçoando aquele meu triste comportamento. Deseducado, embora consequente.

Lá fora os gatos pequenos brincavam ruidosamente. Podia ouvi-los a lutar uns com os outros, em brincadeiras de faz de conta. Miavam com alegria e entusiasmo enquanto as mães, aproveitavam para reunir forças para a próxima mamada. Que força têm as mães, na natureza. E as crias, que sorte! Como deve ser bom poder brincar despreocupadamente e sentir-se que se está protegido pela maior força da natureza. A força invencível da maternidade.

Não consegui falar com a mulher, a Dulce, mas gostaria de o ter feito. Só para lhe dizer que fizesse o que pensou tantas vezes fazer. Que partisse.

Como um gato vadio, em direcção à liberdade.

Que fosse uma mulher só, num destino desconhecido, num novo começo, talvez.

Agora, apenas, partir.

Mas,

Não consegui dizer-lhe, não consegui falar com ela.

 

TUDO TINHA MUDADO DE FACTO, MAS SÓ MATANDO O AMOR, O LUGAR DEIXARIA DE SER ESTRANHO.

 

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