O
despertador toca, mas já estava acordada. Há muito que enxotava de mim a
sensação de torpor matinal que antecede os dias em que me tento enganar, e para
isso me embalo e me aconchego nas memórias e nas vontades por cumprir, que
nascem do rasto mentiroso das primeiras. Não me apetece sair, não me apetece
enfrentar as pedras da calçada nem com elas jogar xadrez, transformá-las em quadrados
e triângulos de chocolate preto e branco ou em matrizes de exercícios de
“Sudoku”, enquanto caminho apressada por entre os olhares, aparentemente
desinspirados dos outros transeuntes. Levanto-me, cabeça no ar e coração ao
alto, um pé no sonho e outro no banho, o ritual da toalha que à pressa “me
passa a mão pelo pêlo”, a dança do creme que se espalha devagar, com cuidado, torneando
a epiderme da minha felicidade, enquanto as ondas do rádio se atiram ao ar,
esculpindo o silêncio a palavras e notas juntas, mas que não soam a canção. Visto-me
de fresco e depois o casaco, é melhor o casaco, não vão os humores bipolares
desta Primavera trocar-me as voltas. Saio, e sigo em frente. Sempre
mantive este hábito de seguir em frente, mesmo depois de o tentares mudar.
Sempre segui em frente, mesmo sabendo que o fazia em terreno minado por ti.
Sempre tentei manter uma aparência feliz e fresca que nem um molho de salsa
acabado de borrifar, como que acabada de sair do salão de estética a seguir a
uma massagem de qualquer coisa.
Chego
ao escritório. É muito cedo e o silêncio está instilado e instalado no lugar
dos que ainda não chegaram. O amontoado de papéis errantes sob a secretária,
duplicou inexplicavelmente durante a noite. Escrevo, arrumo, arquivo, telefono
e faço tudo o que me foi pedido. Reparto a sensação do dever cumprido com a
paisagem que dança na janela, dotada de horizontes de esperança inesperada,
invisíveis aos olhos dos outros, mas que me chamam constantemente, obrigando-me
a arregaçar as meias mangas da minha atenção. Mascaro-me de um interesse
colorido, de um sentido de humor prosaico, que vai bem com tudo o resto. Acaba
o dia, volto a casa, entro e olho-me da janela. Pareço-me sempre acossada por
uma tristeza rectilínea, vertical, daquelas que nos sobe e desce como um
ascensor descomandado.
Arrasto
a minha consciência e sento-me com ela, frente a frente no velho sofá. Ela
expulsa-te e arrasta-me até aos portões entreabertos do sono e eu esbracejo,
gracejo, gaguejo e dou pontapés na gramática, porque o que quero é descobrir-te
a espreitar-me, por entre as imagens do filme que passa. Segundo intervalo. Penso
no jeito danado que me dava esquecer-me da superlatividade absoluta dos teus
beijos e da forma como sempre me arrepelaste os sentidos, da popa até á proa.
Lá
fora, as sombras dos gatos que se equilibram nos beirais e as heras que
cresceram demais, espreitam coscuvilheiras pelos vidros baços das janelas.
Sinto
a esperança forçar a placenta da razão, que não cede ao eminente parto
prematuro. Percebo que a cofragem deslizante que serviu para construir o nosso
túnel, não aguentará com o peso da estrutura, abalroada pela derrocada do
passar dos nosso anos.
No
meio de bocejos resignados, arrisco o “zapping” e fixei os “Prós e Contras”.
Fico-me por aqui….
Enroscada
num dos lados do sofá, arrelio o gato, enquanto conto uma a uma as fotografias
espalhadas na sala. Parecem-me velhas, gastas, sem cor, conto quatro mas sei
que são oito.
E
foi sempre assim desde que te foste, tudo na minha vida ficou pela metade!
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