“E
agora eu vou-me embora
E embora a dor
Não queira ir já embora
Agora eu vou-me embora
E parto sem dor”
Sérgio Godinho
A
casa era a mesma. Com o portal a desmaiar sem cor, pelo passar do tempo e pelo
não passar de nada.
Esse
entardecer era como os outros, pincelado de um lilás difuso, mistura
indissolúvel do Verão com o lugar. Com aquele lugar.
Os
entardeceres ali eram sempre iguais, mas, paradoxalmente sempre diferentes dos
entardeceres dos outros lugares do mundo.
Todos
os vizinhos sabiam disto, destas coisas simples, menos o marido sem nome que
ainda ali morava.
Nesse
entardecer, não sei muito bem porquê, não mo contaram os vizinhos e eu não
perguntei
A
mulher
A Florinda
depois
de uma longa e apurada meditação
Decidiu
quebrar o silêncio de si própria
E
fez-se gente
E
falou. Apenas com ele é certo, mas falou. Abriu a pele e mostrou-lhe as
feridas.
Ele
olhou-as, olhou-a e nada viu. E ela não se importou que ele não visse. Que lhe
importava o seu silêncio, se tinha rompido com uma amarra qualquer?
Que
lhe importava morrer de improviso o seu sentir? Se a dor das palavras tinha
voltado e ela,
agora
já mais velha
A
mulher do sótão
A
mulher só
A
mulher amor
A
mulher cativa
Que
lhe importava morrer ela própria de improviso, se a dor das palavras tinha
voltado e ela sem saber o que fazer, sangrou
E
ele olhou-a e ela olhou-o
Ela
não esperou por mais nada. Alinhavou e caseou a decisão. Saiu da casa, pela
porta de entrada. Passo rápido e seguro em direcção a nada, em direcção a tudo.
Contam
os vizinhos que ele desapareceu de lá, da casa, mais tarde, mas não muito mais,
fechou a porta e levou o cão. Consta-se que parecia perdido, que se afogou na
bebida, depois no jogo. Por fim no mar. Consta-se que não morreu, que apenas
navegou para longe. Para muito longe.
Ela
continuou o seu caminho em direcção ao tudo que ela pensava ser nada. Ficou
mais ou menos por ali, por perto de mim. Abordei-a uma, outra vez, falou
comigo, primeiro a medo e depois não. Sorriu, muito pouco mas sorriu.
A dor
de ter perdido a casa e o cão era uma constante no fundo dos seus olhos. Pensava
eu que a dor era por isso. E ela disse-me que sim, que era.
Aquele
edifício que fugia ao habitual de outros do género, o tal que era mais bonito,
diferente, acolheu-a de novo e ela sentia-se a habitar o paraíso.
O
tempo passava igual a si próprio, enganando tudo e todos, menos a ela. O
sorriso estava lá, as palavras escorriam-lhe agora, claras, com brilho, como
uma chuva de estrelas caídas do céu da boca.
Mas
os olhos. Os olhos dela tinham sempre uma cor estranha, uma tonalidade esbatida
numa tela vazia, como se o pintor não soubesse ainda o que fazer do quadro. Como
se o pintor não conseguisse expressar o sentimento. Pincelando apenas.
Assim
eram os olhos dela.
De
que cor serão os olhos da ausência?
… como
falar dos olhos dela? Tinham sempre dentro deles a maior tristeza do mundo,
daquelas que desenterram os poemas do fundo dos poetas, mas que entristecem
ainda mais a própria tristeza. Por isso desviava do dela o meu olhar, porque
mais triste que os olhos dela seria esta inevitabilidade de não saber calar em
mim, o poema triste. Eu, que nem sou poeta….e que nem sei se escrevo por desejo
ou cobardia ou por pura heresia, mas que me decalco e inscrevo. De tristeza
também, por vezes.
Nada
porém que se assemelhe aos olhos dela.
Esta
mulher já não tinha o marido sem nome, nem tinha a casa, é verdade, mas tinha
outra, sem sótão e sem grades mas trazia-o ainda enrolado no seu dedo anelar.
Não
tinha o cão, é verdade, mas tinha a vida, na palma da sua mão. Inteira,
aparentemente inteira.
Falei-lhe
tantas vezes das flores
Do
céu
Das
crianças
Da
chuva
Do
céu e do mar
Das
aves e
Da
sua impossibilidade natural de voar
Expliquei-lhe
que não voava como as aves
Mas
que era tão volátil quanto elas.
Falei-lhe
de tantas coisas,
Arranjei
palavras mágicas
Senhas
Nenhuma
mudou a cor daquele olhar, da cor da noite, da cor do exacto momento em que a
ausência fecunda a solidão.
E
da cor que na periferia noite adentro
Almeja
apenas as mãos
Apenas
as mãos
Uma
despindo a outra
Até
ao último nó.
Falei-lhe
por fim, um dia, já em desespero da
Única
coisa que,
Não
mudaria o seu olhar
Nem
que eu fosse louca
O
marido, o marido sem nome que partira com o cão
Para
parte incerta
Logo
a seguir a não senti-la certa. Para ele.
Espero,
observo
Nos
seus olhos pardos o passado pesa
E
há ferida e há dor e tudo inflama.
De
repente quisera não ser eu, poeta ou passo ou autor do mote ou palácio erguido
num confuso brio.
Observo
de novo a cor dos olhos, e consigo defini-la
Castanhos
De
brilho
Na
margem de cá
Cá,
sempre cá.
Fico,
reservo, esqueço e lanço ao rio o tonel dos meus anos.
Olhei-a
estarrecida. Nada digo.
Pego
nela, arrasto-a comigo entre risos, canções, entre mares e corações
E
chego com ela à outra margem. Livremente.
Olho-a,
olha-me e sorri. Grita em silêncio a vitória, a liberdade. Rejubilo e bebemos
até cair. Eu e ela.
A
palavra está enterrada, cardíaca, a alma reclama o seu desejo último, ávida,
secreta.
Ao
acordar ainda lhe falei dos caminhos por trilhar. De todas as outras casas, de
todos os outros cães, e de todos os outros maridos. Todos menos um: o que não
tinha nome. Olhou-me com doçura, deu-me a sua mão, consentiu na entrega e com
os olhos outra vez sem cor, perguntou-me: Mas se ele voltar?
Se
ele voltar tenho que mudar de margem.
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