SÓ MATANDO O AMOR É
QUE ELE ACABA
Não sei, de verdade
que não sei, quantos anos passaram. Os suficientes para não me lembrar de
quantos.
O lugar era porém,
o mesmo: o da mulher doce que tinha um marido sem nome e um cão… que agora
dormia, de novo no pátio e que já conseguia coabitar com animais. Mas apenas
com alguns: os gatos vadios que por ali se juntavam. Só com esses.
Talvez fosse
importante para percorrer mais facilmente o fio desta meada, quantificar o
tempo que passou. Mas não sei, de verdade que não sei.
Talvez fosse
importante ter contado as estrelas no céu, para perceber se agora há mais, ou
menos, mas não contei. E agora não me lembro de quanto tempo passou.
A única pista que
tenho é que a mulher era já muito mais velha e até eu, já quase o era.
Pelo menos ela
achava isso, que eu era já demasiado velha, talvez até algo senil e por isso,
deixou de me contar as suas coisas.
E assim, durante
muito tempo, deixou de ser a estrela do meu filme, a mesma da galáxia da fronte
dos meus olhos.
Os vizinhos iam
dizendo coisas, que já não estava só, que o marido voltara, que enlouquecera.
Eu apenas sabia que ele continuava a não ter nome, como sabia que ela sempre se
chamaria Dulce. Sabia ainda que o sótão tinha sido aberto. Eram coisas que
sabia, que sabia assim como quem sabe coisas simples, como o dia sabe que se
lhe segue a noite, como o mar sabe que a areia o espera. Coisas terrenas, mas
simples, muito simples.
Como ela, já não me
contava nada e o que os vizinhos diziam era etéreo, inconsistente… saí de
dentro de mim e, espreitei, espreitei a medo
Pela fechadura de
uma porta da casa
Uma porta de um
quarto iluminado, apenas por um laivo de luz que
Timidamente surgia
pela também tímida frecha da persiana
fechada.
Vislumbrei na
penumbra um drama ainda adormecido
22 horas e 22
minutos, marcava o meu relógio de pulso. A mesma hora que marcava o outro
relógio, no outro pulso que estava na penumbra, num pulso que ainda dormia.
Havia roupas
espalhadas pelo chão, capas de velhos discos de vinil e muitas velas apagadas
aleatoriamente distribuídas pelo quarto.
Algo naquela casa
havia mudado muito desde que me lembro.
Algo mudara muito, porque no outro tempo, não havia discos de vinil.
Isso pelo menos não havia.
A ambiência de
sombra e luz, de penumbra e medo, revelaram-me um garrafa vazia e dois copos e
o buraco da fechadura afigurava-se-me pequeno para prosseguir em direcção a
qualquer coisa, a sua salvação, convencia-me. Questionava-me se a pequenez
deste buraco não comprometeria o meu objectivo.
Encontrei
rapidamente a resposta, que diabo, a salvação não dependeria nunca do tamanho
de coisa nenhuma.
Um dos copos ainda
estava de pé, encostado à mesa de cabeceira, o outro caído no chão,
Caído sobre um
tapete roto, roto e verde, manchado de um vermelho muito escuro.
Tinto de vinho ou
tinto de sangue, não conseguia distinguir.
Uma das capas de
vinil ainda com vestígios de cocaína.
Branca.
Neve.
Branca de Neve.
Parecia, de repente
uma história infantil.
Ingénua.
Parecia e era.
Uma capa de disco
de vinil com vestígios de procura vã.
Inspiração -
expiração - Beatles, talvez.
Uma nota enrolada
Um homem nu
dormindo, agarrado a uma almofada. Era ele, já velho mas era ele, o marido sem
nome. Que voltara, voltara mas diferente.
Assim, olhando de
repente, a partir de dentro, mas do lado de fora, até parecia uma criança
ingénua, afogando no sono o medo. O medo do acordar.
A imagem fez
antever o drama e o quarto tinha duas portas, uma que dava para a cozinha e
outra que dava para o corredor. O corredor dava para o sótão. Ela estaria lá,
presumi eu, não forçada, mas livremente, aguardando outro milagre.
O quarto tinha
também duas janelas, uma dava para a traseiras, para os vizinhos, e estava
completamente fechada, trancada, cimentada. A outra dava para um pátio lateral,
agora albergue de gatas vadias que para ali iam ter as suas crias e que por ali
ficavam até que estas, as suas crias, se tornassem gatas independentes e fossem
também vadiar. Para outros pátios ou para outros mundos. Buscando o que de bom
o mundo da vadiagem tem para dar: a liberdade quase absoluta! A fome e o frio
são compensados pela liberdade.
Livres são todos os
gatos mas nenhuns o são tanto como os gatos vadios.
Eu pensei desde que
me incluí nesta história que aquela mulher, a Dulce, queria um dia ser assim:
como os gatos vadios, livre.
Mas não era assim,
ela pensava que queria, mas de facto não queria, ou não podia, porque o amor
que sentia não era livre, não era atípico, era de um lugar estranho.
Pelo buraco daquela
fechadura, emanavam cheiros difusos, efémeros, mas intensos
Cheiros de perfume
Cheiros de incenso
Cheiros de velas
derretidas
Cheiros de vinho,
De suor, de prazer,
de lágrimas, de gritos
E
De raiva, de dor
Cheirava a morte
Que deixava antever
um qualquer drama.
Talvez os vizinhos
percebessem pelo cheiro, que a deveriam salvar de novo, nem que fosse para o
mesmo asilo. Ou talvez não.
O homem nu que
parecia ter medo de acordar estava lentamente a despertar. Não fosse não ter
nome e poderia tê-lo chamado. Atraído por qualquer forma. Aqui para o lado de
fora.
O seu corpo parecia
sentir o cansaço e a dor do prazer que não recordava.
Assoou-se e percebi
que a sua amnésia era quase total.
Este homem sempre
foi mau, mas antes, quando não tinha partido para aquele lugar, onde ela o foi
visitar sempre, mesmo sem ele pedir, não era amnésico, não sabia ainda que se
faziam viagens em direcção a ela. Dantes, bastava-lhe apenas ser mau.
Não conhecia ainda
aquele milagroso pó branco que trazia à tona de si o melhor e depois o pior logo
a seguir e inevitavelmente, o pior.
Que acontecia
agora, nesse momento, nesse despertar, que nem lhe permitia distinguir se os
arrepios que sentia, eram frio ou maus presságios.
E sentia-se
assustado
Esfomeado
E pensava nela. Só
pensava nela porque tinha fome, mas ainda assim pensava nela. Onde estava ela?
Doía-lhe a alma e doía-lhe o coração mas nem se lembrava
porquê, e só se lembrava que tinha alma e coração, porque lhe doía. E tinha
pena que nunca se tivesse lembrado antes.
Antes da Branca de
Neve.
Chamou-a muito
alto, pelo nome, e sabia que ela iria chegar, submissa e dócil como sempre,
para lhe preparar uma qualquer refeição, gordurosa com pão, muito pão,
aquecido no forno do fogão a lenha, e
sabia que ia lamber aqueles beiços animalescos e que se ia atirar de novo para
cima da cama e regalar-se com a refeição que a fome e a ressaca transformariam
num verdadeiro festim.
Mas ela não respondeu. E não veio. Pelo menos logo.
Mas ela não respondeu. E não veio. Pelo menos logo.
Tirou o cinto,
devagar, preparou-o de modo a desferir à sua entrada, um primeiro golpe,
doloroso e certeiro.
O cinto já estava
acostumado. Porque o cinto era velho, muito velho!
Olhou novamente o
quarto e desta vez viu-o real. O quarto real tal como se tinha tornado nessa
noite.
O drama tornou-se
visível. Tomou forma. Os copos eram dois.
Onde estava ela?
No quarto, o drama
brincava, astucioso, matreiro, mas real tremendamente real.
Levantou-se, saiu e
foi ao sótão.
Ela estava lá
Inerte,
Gelada
Aparentemente não
sentia nada. Nem fome, nem dor, nem cansaço.
Nada, não sentia
nada
Mas estava viva.
Ele sabia-o. A cocaína não mata ninguém à primeira.
À primeira é apenas
a Branca, a Branca de Neve.
Ela voltaria a
sentir. Não que isso lhe importasse, mas importava-lhe não voltar ao inferno de
onde ainda agora tinha saído… isso sim, importava-lhe.
Puxou do cinto.
Estava nu, mas tinha trazido o cinto. E bateu-lhe, bateu-lhe muito, não para
lhe fazer mal, mas para que ela acordasse e assim não lhe causasse mal a ele.
Ela acordou,
lentamente mas acordou. Olhos vidrados. Percebeu que ninguém a salvara e
caminhou para a cozinha, para preparar a gordurosa refeição.
Ele lambeu os
beiços de animal e amaldiçoou o único momento de partilha da sua vida. Não por
ela, não , apenas porque o preço poderia
ter sido ainda mais alto. Mais alto do que a dose que tinha desperdiçado, e
partilhado com ela num momento de loucura.
Afastei-me do
buraco da fechadura, vencida, amaldiçoando aquele meu triste comportamento.
Deseducado, embora consequente.
Lá fora os gatos
pequenos brincavam ruidosamente. Podia ouvi-los a lutar uns com os outros, em
brincadeiras de faz de conta. Miavam com alegria e entusiasmo enquanto as mães,
aproveitavam para reunir forças para a próxima mamada. Que força têm as mães,
na natureza. E as crias, que sorte! Como deve ser bom poder brincar despreocupadamente
e sentir-se que se está protegido pela maior força da natureza. A força
invencível da maternidade.
Não consegui falar
com a mulher, a Dulce, mas gostaria de o ter feito. Só para lhe dizer que
fizesse o que pensou tantas vezes fazer. Que partisse.
Como um gato vadio,
em direcção à liberdade.
Que fosse uma
mulher só, num destino desconhecido, num novo começo, talvez.
Agora, apenas,
partir.
Mas,
Não consegui
dizer-lhe, não consegui falar com ela.
TUDO TINHA MUDADO
DE FACTO, MAS SÓ MATANDO O AMOR, O LUGAR DEIXARIA DE SER ESTRANHO.
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