ESTRANHO LUGAR
Chamava-se asilo.
Era um asilo para velhos.
Diz-se que a excepção
confirma a regra e este era um desses casos. Apesar de ser um asilo nada tinha
de tenebroso.
Era um palacete
antigo, mantendo toda a sua traça original. A fachada exterior e interior
adaptada ao fim a que destinava: proporcionar tratamento, alojamento e alento a
velhos desamparados.
Mas ela não era
ainda muito velha. Porém estava doente. Muito doente.
E desamparada,
terrivelmente desamparada.
Ali, encontrou os
cuidados de que carecia, o afagar da sua solidão, o carinho, a segurança e o
apoio, que há muito esquecera o que significava.
Quando lá chegou não
falava, nem andava e,
o seu corpo estava
encarquilhado como um papel amassado e aleatoriamente atirado para um canto, e
depois pisado com força.
Não andava.
Não se sentava.
Não se mexia.
Nada nela emanava
qualquer sinal de movimento.
Nem sequer o olhar!
Parado e colado num
ponto que ninguém , a não ser ela, sabia qual era.
(Saberemos depois)
Chegara lá vinda de
um sótão.
O sótão de uma
casa, como os das fotografias, um sótão comum.
De uma casa comum.
Um sótão com metro
e meio de altura,
Onde de quando em
vez lhe deixavam comida.
Dividia o escasso
espaço com alguns ratos.
Seus companheiros,
sua única companhia.
Com quem repartia a
comida.
Dava-lhes comida,
mesmo a comida sendo pouca
Mesmo quando a
deixavam vários dias sem alimento.
Os seus companheiros
não gostavam nada quando isso acontecia
E, quando faltava
comida comiam-na a ela.
Não muito. Apenas
um pouco. Nada que não suportasse.
Só uma mordidela
aqui e outra ali.
A prova é que
estava viva.
O marido, tinha
sido o marido que a tinha colocado naquele sótão.
Pequeno, muito
pequeno.
Descobriram isto os
vizinhos
Mas passados muitos
anos.
Não porque dessem
pela sua falta, mas foi o cheiro.
O cheiro
nauseabundo da casa.
Antes disso vivia lá
mesmo na casa, não no sótão, submissa e feliz!
Ela.
O adorado marido
E um cão.
Ela achava que era
feliz.
O cão era feliz.
O marido era coisa
nenhuma.
E Ela era quase
feliz.
Tinha tudo
Um marido que amava
profundamente.
Um cão meigo,
carinhoso e fiel que a olhava com olhos de mel
Mostrando sem pudor
toda a fidelidade e devoção que tinha por ela: a sua dona.
Quando não estava a
limpar, a engomar ou a cozinhar
Ou a cumprir os
seus deveres de esposa, satisfazendo os desejos físicos do marido
Estava no alpendre
da casa, afagando o cão
Retribuindo-lhe com
mel o mel do seu olhar
Mas um dia o marido
fartou-se dela
E guardou-a no sótão,
como um objecto velho que se não quer já usar.
Ela lá ficou.
Obediente
Sem um grito
Sem um gemido
Sem um ai
Ficou onde ele a
colocou
E ali ficou
silenciosa e inerte
Meio morta
Durante vários anos
Depois de
descoberta pela vizinhança, o carinhoso marido transferiu-a
Do sótão de metro e
meio para o tal asilo para velhos.
Que até era bonito,
mesmo sendo asilo.
E ela lá ficou.
Colocada onde ele a colocou.
Mais uma vez. E ali
se deixou ficar.
Lá, foi melhorando.
Muito lentamente,
mas foi melhorando
Chegou a conseguir
sentar-se.
Todos se esforçavam
por ela. Todos menos ela.
Ela limitava-se a
ali se deixar estar.
Morta por dentro.
De aparência.
Não dizia uma
palavra.
De tudo se tentou.
Todos os temas. Todos os poemas.
Menos um: o marido!
O tema era
proibido, por medo, obviamente, de a fazer entrar em choque.
Seguindo à risca o
conselho de todos os médicos, psicólogos e psiquiatras.
Que a observavam
sem parar.
Um dia, uma miúda
nova que por lá fazia voluntariado,
perdeu a cabeça, e
levada pela esperança e pelo desespero de tentar, tentar e não conseguir
arrancar-lhe uma única palavra,
Arriscou o mais
arriscado
Ousou o mais
proibido
Disse a palavra:
marido
Momento único em
que o milagre aconteceu
Os olhos dela
raiados de lágrimas. Não de tristeza, não…
Mas de ternura e de
saudade.
Na face, outrora,
inexpressiva, desenhou-se um sorriso
E não, não foi um
sorriso de ironia
Foi um sorriso de
alegria
Toda ela se encheu
de brilho
E não, não foi o
brilho da raiva
Foi brilho de amor,
de paixão, até
E falou
Só para pedir que
ele a fosse ver
Ele foi
E depois, ela começou
a falar
Nele
No cão
E no voltar para
casa.
Ele fazia o favor
de lá ir de vez em quando
E ela resplandecia
Ele por vezes
faltava, e ela morria de novo
Renascia depois
Quando ele voltava
A casa onde moravam
é igual a uma casa
De uma fotografia
qualquer
O sótão é nessa
casa
O cão vive à porta
Espera o regresso
da dona e recusa partilhar a casa, com o animal da casa
Ela pode chamar-se
Dulce
O cão pode
chamar-se Fiel
Do marido não me
ocorre o nome
Não pode ter nome
Porque não é gente
Não é humano
É apenas um erro da
natureza que o sistema permite andar à solta.
O ponto onde ela
fixava o olhar era a memória da imagem dele
Esta história pode
até ser verdadeira
Os nomes não
A casa não é bem
como a da fotografia
Mas o cão tem os
mesmos olhos de mel.
E eu.. Eu queria
ter sido a miúda cheia de esperança que lhe arrancou a primeira palavra, depois
dos demorados silêncios.
QUE ESTRANHO LUGAR É
ESSE, O DO AMOR!
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