ESTRANHO LUGAR, O
DO AMOR
OUTRA VEZ
“Porque percorres o
céu inteiro à procura da tua estrela? Poe-na lá”
Virgílio Ferreira
A mulher era já
mais velha. Só um pouco. Mas sim, mais velha.
Continuava a falar
pouco. Mas sim, já falava.
E sorria. Sorria
mais, não sempre.
Mas mais.
Continuavam a
chamar-lhe Dulce, que era o nome dela. Os nomes nunca mudam. Mesmo que as
pessoas queiram.
O cão era ainda
mais fiel à dona do que dantes. Os seus olhos eram ainda mais de mel. Da cor e
do sabor.
O marido, o tal de
que não sei o nome, continuava por lá. Diziam que sim. Eu nunca mais o “vi”.
Mas sabia, sabia que continuava por lá, a ser, como antes, o dono absoluto de
quase tudo.
Naquela mesma casa….
Dono de todas as
chaves e do coração dela que nem chaves tinha.
Só não conseguia
ser dono do cão. Não era dono do cão porque o cão não deixava. Sabia desde
sempre que a sua dona era ela.
Foi num entardecer,
igual a todos os outros, todos igualmente diferentes e todos diferentemente
iguais.
Um entardecer
qualquer.
Um daqueles pedaços
do tempo, das horas, dos dias, de todos os dias.
Um pedaço de tempo,
que tanto pode ser o princípio como o fim.
Que tanto aproxima
como separa.
Que tanto une como
isola
Que tanto esconde
como revela.
Um daqueles
entardecer
Onde se vislumbra já,
um projecto de noite emoldurado na
Um sol e uma lua
apaixonados.
Um sol e uma lua
caminhando apaixonadamente um para o outro.
Era nesse exacto
eixo do tempo que ele, o tal marido sem nome chegava à casa. Dia após dia.
À tal casa, que
podia ser a de uma fotografia. De uma fotografia qualquer. Mesmo que a
fotografia fosse tirada num qualquer entardecer.
Nesse dia o sol e a
lua beijaram-se no mesmo momento de sempre, como se nada tivesse mudado.
Mas ele não chegou.
Soube-se, pela
vizinhança, que cometera um crime. Não me lembro qual, ou não perguntei. Era só
mais um.
Outro qualquer,
concretizado noutro lugar que não o sótão, que não a casa.
E ela ficou só. Por
vezes apenas. Outras não, porque ia visitá-lo. Ia visitá-lo sempre que podia.
Sem que ele o
pedisse. Mas ela ia.
A mulher, não tinha
ainda dito, era doce, talvez por isso se chamasse Dulce, e sorria agora, não
muito ainda, mas mais que sempre. Ela ficou só, é verdade, porém,
paradoxalmente, a solidão saiu. Saiu, não pela porta da casa, mas pela porta do
coração dela.
O cão dormia com
ela na casa. Antes não. O cão tinha um estranho comportamento. Não convivia
pacificamente com mais animais. E antes não dormia com ela dentro da casa. Era
essa a razão.
O sótão foi
fechado, mesmo sem fechadura foi fechado, e a mulher passou a sair à rua,
primeiro apenas para se enfiar nas estações de camioneta de cheiro a óleo
queimado para ir ter com ele, aos fins de semana.
Mas depois, depois
passou a sair um pouco mais. Um dia até foi à feira. Devagar e a medo, mas foi.
E lá, até prendeu o
olhar noutro ponto que não a imagem dele. Momentaneamente é certo, mas prendeu.
Prendeu mas não
ficou presa.
Porque preso estava
ele, por um crime que não cometera, acreditava ela, pensava ela - mas estava.
E ele precisava
dela e ela precisava que ele precisasse dela. Só por isso não ficou.
Talvez os vizinhos
estranhassem vê-la sorrir agora mais que sempre, talvez estranhassem, mas nunca
lhes perguntei e eles nunca mo disseram. E nunca lho disseram. Mas ela sabia-o.
E também sabia que
sorria mais que dantes, mais que nunca e também sabia, pensava ela, que não
devia.
Sabia agora tanta
coisa, que até sabia que talvez fosse isto a felicidade, ou por lá perto.
Sabia, ou sentia,
ou sentia que talvez soubesse.
E o cão sabia ou
pressentia que mudara de dona. E até sabia a razão. O cão sempre soube de quase
tudo, ou pelo menos os seus olhos de mel diziam que sim, que sabia.
Os ratos não. Os
ratos morreram no sótão e aí secaram e apodreceram.
Tinham aparecido no
sótão livremente, é certo, mas em busca da sobrevivência, e por isso,
livremente mas condicionados ao instinto da sobrevivência. E lá morreram,
porque lhes faltou o alimento. Ela.
Mas que lhe
importava isso? Nem o cheiro lhe importava. Nem o cheiro, nem nada. A leveza do
sorriso, alheava-a do mundo. Do mundo, mas não dele. Do marido sem nome e sem
registo.
Nunca se alheava
dele. Ou pelo menos assim acreditava. E assim me fez acreditar.
E dia após dia,
chegava sempre o entardecer, igual ao outro em que ele não chegou.
Um entardecer em
que mãos entreabertas, olhos cerrados e corações encantados, procuram sempre um
breve encontro.
Entardecer em que há
um encanto, que o outro encanto, o do tempo imparável e intemporal os obriga de
novo a afastar.
Era apenas mais um
entardecer
Que une quem tem a
quem se unir.
Os corpos unem-se
aos corpos
O sofá une-se à
televisão
As bocas unem-se ás
bocas.
Os homens às mulheres
e,
até
As mulheres às
mulheres
E os homens aos
homens.
As crianças aos
pais
Tudo se une
E há quem se una
simplesmente à solidão.
Mas esta mulher não.
Não unia o estar só
à solidão.
Talvez fosse o cão
dentro da casa a mudar tudo….
No entardecer seguinte
era Natal. O ritual repetiu-se, vestiu-se de preto para os vizinhos e para ele.
A cor preferida
dela era o azul, mas não lhe ficava bem. Azul era a cor do céu. Nunca seria a
dela. Pelo menos por agora.
E lá partiu de
novo, ao encontro dele. Cheiros à parte, o do óleo queimado que tresandava
pelas velhas estações de camioneta misturado com os cheiros da canela, baunilha
e outros mais, os do Natal.
Com o pensamento
longe, nas curvas da memória, chegou, por fim,
ao destino do seu agora destino.
Um lugar estranho,
mas para ela já familiar, mas só subtilmente familiar.
Num ápice,
apagavam-se-lhe da memória as náuseas do caminho, causadas pelas curvas, pelo
cheiro e pelo desejo exasperante, quase doentio de que o autocarro errasse o
seu destino e se perdesse para sempre noutro tempo.
Ele entrava, e ela
achava-o único - vestido de igual a todos os outros que ali estavam, é certo,
mas diferente, pelo menos para ela. E estava certa….
Nunca antes tinha
tido um Natal com ele. Nem sem ele. Nunca antes tinha bebido um refrigerante. E
nesse dia sim, bebeu. Nesse dia ele chamou-a pelo nome e ofereceu-lhe uma
bebida. “Canada Dry” acho eu. Foi ela que me disse, descrevendo o seu sabor.
Descreveu-o como único.
Mas não era literalmente esse sabor que
ela tinha achado único. O sabor único, era o pouco quase nada de ele lhe chamar
pelo nome. Pelo seu nome.
E depois
entardeceu. Entardeceu de novo. Docemente.
Era só mais um
entardecer
Onde de novo se
unem sol e lua
Inevitavelmente
Mesmo que não o façam
com paixão.
Mas,
Para ela foi um entardecer único
Para ela foi um entardecer único
Breves palavras, sem significado
Trocadas
Arrancadas
Mas palavras
Diferentemente do
antes
Do deserto das
palavras
Pela única vez
sentiu que se chamava Dulce. E sentiu-o porque era doce, muito doce.
E lá partiu ela em
direcção à casa da liberdade. E lá partiu ele, para dentro, não interessa em
direcção a quê, nem para onde.
Ela sorriu, sorriu
muito, mas só na rua!
Sabia que ia
voltar.
Só não sabia era
quando.
TUDO MUDOU
TUDO MUDOU
aparentemente, MENOS O AMOR!
“A esperança seria
a maior de todas as forças humanas, se não existisse o desespero”
Victor Hugo
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.