Chave
na ignição, pára-brisas em marcha, o ronco barulhento do carro. O telefone que
toca, perguntam se é para adiar e respondo que não, que à terceira é de vez.
Chego
ao destino, entro, primeiro degrau e ali estás, encostado à parede branca, a
contrastar com o preto do fato. Pareces-me uma imitação barata do “Omar Sharif”
na versão jovem. A escrivã faz a chamada, enquanto avanço sem medos, entro na
sala, segues-me e dou-te a palavra. Sentas-te no banco dos réus, lanço-te um
olhar e ergues-te, ficas hirto, olhos no chão à procura da “deixa”,
vacilas e engasgas-te. Poupo-te o esforço e peço-te o B.I.. Dizes que não, que
não trouxeste, esfarrapas desculpas em gaguejos nervosos. Declamas os
antecedentes criminais - mas mentes, e reparo que no processo declaraste uma
morada falsa. A toga (ou a beca)?desliza-me dos ombros sob a força do teu olhar
e eu apanho-a a meio da descida, ajusto-a e puxo-a, componho-me, controlo os
sentidos e dou 3 pancadas na mesa. Silêncio, não pode haver desconcentração,
sob pena de se esquecerem os factos que aqui nos trouxeram. Quero recuar e
tento descobrir mil formas de sair daqui, mas só me lembro da escusa, conflito
de interesses, parcialidade, suspeição e fico com medo de mim, desta vontade
quase violenta de te condenar sem dó, de não te admitir recurso de apelo ou
agravo, de não saber burilar os contornos à pena relativamente indeterminada,
nem aos mínimos nem aos máximos, de ignorar atenuantes ou rebordos irisados da
média ponderada. É matéria assente que não vou substituir a pena por medida de
correcção ou coacção, multa, trabalho comunitário, limpeza de ruas, de jardins,
de sarjetas ou de infantários, a não ser que me entendas criança de colo a
gritar por ti, e aí sujeitar-te-ei a termo de identidade e residência - na
minha casa, com a admoestação de nunca mais saíres. Sou juiz em causa própria,
advogada do diabo, cúmplice sob coacção, testemunha comprada e queixosa
arrependida. Pedes absolvição de joelhos, alegas que és primário, bem
comportado, relembras as provas testemunhais, dizes que estás socialmente
integrado e pedes-me com arrogância, a base legal. Dedilhas-te, como outrora a
mim, e alegas que não sabias, que não está escrito, que são coisas do coração, que
te redimes. Mas eu, como manda a lei e a consciência, violando o consentimento
do lesado coração, e com o devido respeito e vénia a todos os presentes, inibo-te
do poder de argumentar!
Relembro
aos jurados que agiste livremente, em consciência e no uso pleno de todas as
tuas faculdades, chamo á colacção a agravante do teu QI acima da média e
termino invocando o dolo mais que directo, apontado aos cantos mais recônditos
de mim!
Reparo
que me olhas de soslaio e depois para trás, fixas o olhar na porta aberta, a
audiência é pública. Detenho-te a intenção de fuga e alerto a autoridade - absorta
provavelmente em pensamentos sobre a última jornada futebolística. Desta vez
não vais escapar-me entre os dedos!
Quero-te
mesmo a pão e água, quero que sintas a angústia que está no tilintar das chaves,
que te arrastes em insónias pela solitária (onde relembrarás outras noites). E
acredita, que nem que hoje seja dia das bruxas ou primeiro de Abril, cumprirás esta
pena, que é a máxima, e que durará até ao fim dos teus dias, partindo pedra,
bordando Arraiolos e montando carris, a que acresce a pena acessória de te
manteres a milhas de mim para o resto da vida. Finalmente condeno-te nas
custas, acrescidas do muito que me tens custado a mim.
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